domingo, 25 de abril de 2010

Aos Mártires de Nossa Ignorância

Vamos voltar um pouco no tempo e observar uma caverna na África, há 15.000 anos. Imaginem nossos antepassados reunidos em volta do fogo, ouvindo alguma história do ancião do bando. Ele transformou-se em uma presa fácil. Em breve, abandonará o bando, ou será atacado por um algum predador. Os jovens escutam, avidamente, aquela que pode ser sua última história.

O fogo chega ao fim, suspira com as últimas brasas, tornando ainda mais míticos os olhos do ancião. O ar pesado do dia cede espaço à escuridão. Um clarão ilumina a entrada da caverna, apenas um segundo depois um estrondo preenche o mundo. Todos se encolhem tremendo, algumas crianças começam a choram, uma jovem que teve seu primeiro filhote começa a entrar em pânico. Então, a voz grave do ancião atinge os ouvidos de todos, primeiro um som chiado, a mão em frente a boca. As crianças silenciam. A mão do ancião passa em torno dos ombros da jovem mãe, que repousa a cabeça nos ombros do ancião, enquanto aperta com mais força sua cria contra o peito.

O velho começa a contar sobre um dos Grandes, um dos chamados Além do Mundo. Ele conta como o Grande Leão,que habita as nuvens, ao perceber seu eterno inimigo, o Grande Falcão mergulhando para um ataque, Ruge com enorme ferocidade, e preenche o mundo com o ribombar de seu poderoso corpo. Nós também podemos observar o início de mais uma das batalhas.

- Lembram do clarão antes do Rugido? Questiona o velho para todos. E ele mesmo responde:

- Era o Pai Sol, brilhando acima das nuvens, que iluminou as asas prateadas do Grande Falcão, e alertou o Grande Leão sobre o ataque.

O ancião continua falando, e paulatinamente todos vão se acalmando. O velho conta sobre o início da Guerra, quando o Pai Sol decidiu que a vasta Planície merecia companhia. Ele criou o Grande Leão, e o Grande Falcão, e então a grande Guerra começou. Os ferimentos dos Grandes Espíritos, ao sangrar nutriram a Grande Planície, e ela floresceu. E sempre que os animais e as plantas começam a morrer, e precisam de mais vida, os Grandes espíritos em sua batalha, doam mais um pouco de sua vida para a Planície, que novamente se enche de esplendor. É por isso que ao batalhar com as outras tribos, deixamos os muito feridos e os mortos para o mundo. O sangue deles se mistura ao sangue dos Grandes Espíritos, e nutre o mundo.


Quantas outras histórias parecidas foram criadas ao longo da história da nossa civilização? Quantas noites foram dedicadas pelos homens mais sábios de sua época, em contemplação às tempestades? Quantas perguntas foram feitas? Quantas vezes nossos antepassados tremeram perante o poder de Zeus, Thor, Shiva…? Quantas virgens foram sacrificadas para aplacar a fúria de algum Deus tirano para que ele enfim mandasse chuva para as plantações?

Nossos antepassados, das mais diferentes épocas, sofreram o mesmo problema daquele pequeno bando, e desenvolveram as mais ricas histórias para explicar os fenômenos que estavam além da sua compreensão. Nossa ignorância, nosso medo frente ao desconhecido já causou muita dor, muitos sacrifícios. Será que não temos responsabilidades sobre essas mortes?

O que pensariam essas vítimas da ignorância humana, esses pobres indivíduos, que se sentiram orgulhosos no sacrifício, se tivessem conhecimento dos mecanismos que controlam as chuvas e as tempestades?

Olhando para o presente, podemos observar os homens sábios de nosso tempo, que continuam a contemplar as tempestades, com mais assombro e reverência que em qualquer outra época. Não por temor ao desconhecido como nossos antepassados, mas justamente pelo contrário. Não precisamos mais atribuir esses fenômenos aos deuses, pois hoje conseguimos explicar os mesmos. Pense sobre como ocorrem as grandes tempestades, procure no Google sobre a importância das chuvas nos ciclos biogeoquímicos, fundamentais para a manutenção dos ecossistemas atuais. Pensem nos primórdios da vida. Vamos observar as cianobactérias contaminando o ambiente com Oxigênio. Veja a água dos mares se tornando cada vez mais clara, enquanto o Ferro que lhe conferia uma cor alaranjada se combina com esse novo oxigênio, e forma os grandes depósitos de minério que são fundamentais para nossa economia atualmente.

Olhando com mais atenção para nossa história, observamos que por mais absurdas ou incognoscíveis que as perguntas possam parecer no presente, o futuro pode muito bem considerá-las triviais, simples questões destinadas às crianças.

Claro, temos nossas grandes perguntas que ainda não foram respondidas, imagino que cada tempo tenha suas próprias questões, e para aqueles que vivenciam esse momento, elas sempre são assombrosas, aterradoras, dignas de uma reverência religiosa.

Mas temos uma dívida com os “mártires” da nossa história. Devemos aos que foram sacrificados durante a jornada de nossa espécie. Eles merecem justiça. Claro que não a justiça do tipo preguiçoso, que espera por uma eventual interferência divina em algum momento.Vidas únicas com uma ínfima probabilidade de existir foram ceifadas pela nossa ignorância. Seres únicos, que nunca mais terão a oportunidade de existir, foram destruídos para aplacar o medo de nossos antepassados.

Não podemos permitir que milhares de sacrifícios sejam em vão. Possuímos a responsabilidade moral de aprender com o erro de nossos antepassados. Nossa história já demonstrou que não devemos ceder à ignorância e ao medo do desconhecido. Que essas inúmeras mortes tenham um propósito. Que cada vida perdida seja um incentivo ao conhecimento, um brado contra o temor ao divino. Que a razão nos dê discernimento para que nunca mais existam vítimas da nossa ignorância.

2 comentários:

  1. Creio que não sejamos responsáveis por estas "vítimas".
    Primeiro porque, em meu ver, "vítima" é alguém que sofre as conseqüências dos atos de terceiros, ou
    de uma catástrofe natural, por exemplo.
    Alguém que sofre ou morre por algo que escolheu eu não considero vítima.
    Com este conceito, excluímos todos aqueles que se sacrificaram por algo que acreditavam.
    Se eu acredito que minha morte trará chuva e vida à terra e o faço, não sou vítima. O fiz por
    livre e espontânea vontade.

    Mas voltando à todos aqueles que foram forçados à morte ou outros sacrifícios por ignorância dos
    outros...
    Bem, ignorância é algo contextual. Tem-se de ajustar o ponto de vista pra ver se algo é, ou não,
    ignorância.
    No fim, ela é e não é, ao mesmo tempo.

    Pegando como exemplo a tribo primitiva, nós, hoje, a olhamos e dizemos: "ignorantes, não sabem que
    tempestades são um fenômeno natural".
    E aí está o ponto de vista: para nós, eles são ignorantes. Mas e para eles? eles não se acham
    ignorantes, eles sabem que as tempestades surgem de uma batalha divina. E este é o correto.
    Se eles sacrificarem uma pessoa aos deuses, será ignorância PARA NÓS, a pessoa será uma vítima
    PARA NÓS.
    Logo, não somos responsáveis por esta morte. Errada ou não, é responsabilidade DELES.

    Pegando um exemplo atual: as tribos africanas onde se tem por cultura mutilar a genitália feminina.
    Para a nossa cultura, esse ato é ignorante. Porque? Bem, porque na nossa cultura, a mulher tem
    liberdade de escolha, tem direito ao prazer, além dos nossos conhecimentos médicos, que mostram
    o quão perigoso tal procedimento, nas condições deles, é perigoso à saúde.
    É ignorância para nós. A mulher é vítima perante nós. Não temos responsabilidade nisso.

    Bem, mas para nós, seres que buscam o conhecimento e têm horror à ignorância, que fazer diante disso
    tudo?
    Não dá pra tentar impedir o procedimento à força. Se fizéssemos isso, muito provavelmente a jovem
    iria espernear e lutar para que o procedimento seja feito, pois é uma tradição.
    Como nos índios e seus rituais para a transição "menino-homem". Interrompa isso e o menino jamais
    se tornará "um homem", e isso será terrível para ele.

    Creio, então, que a solução seja uma de duas: ou deixa-se a dita cultura seguir seu rumo sozinha e
    evoluir aos poucos, ou tenta-se, delicadamente, introduzir certos conhecimentos que irão ajudar
    nessa "evolução" sem prejudicar a cultura.

    Porque, por mais que eu ache algumas culturas terríveis, é a diversidade desta que faz com que
    humanos sejam tão fascinantes. Tentar acabar com a "ignorância" dessas "tribos" irá por fim destruir
    a cultura delas, até no fim restar apenas uma comunidade homogênea, fruto de nossa própria ignorância.

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  2. Comentário pequenino esse meu... o.o'

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